segunda-feira, 19 de março de 2012

DOIS TEXTOS INTERESSANTES SOBRE A LAICIDADE E O DIREITO.

Zero Hora - 12 de março de 2012 | N° 17006

ARTIGOS

Tempos apocalípticos, por Paulo Brossard*

Minha filha Magda me advertiu de que estamos a viver tempos do Apocalipse sem nos darmos conta; semana passada, certifiquei-me do acerto da sua observação, ao ler a notícia de que o douto Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado, atendendo postulação de ONG representante de opção sexual minoritária, em decisão administrativa, unânime, resolvera determinar a retirada de crucifixos porventura existentes em prédios do Poder Judiciário estadual, decisão essa que seria homologada pelo Tribunal. Seria este “o caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de Estado laico” e da separação entre Igreja e Estado.

Tenho para mim tratar-se de um equívoco, pois desde a adoção da República o Estado é laico e a separação entre Igreja e Estado não é novidade da Constituição de 1988, data de 7 de janeiro de 1890, Decreto 119-A, da lavra do ministro Rui Barbosa, que, de longa data, se batia pela liberdade dos cultos. Desde então, sem solução de continuidade, todas as Constituições, inclusive as bastardas, têm reiterado o princípio hoje centenário, o que não impediu que o histórico defensor da liberdade dos cultos e da separação entre Igreja e Estado sustentasse que “a nossa lei constitucional não é antirreligiosa, nem irreligiosa”.

É hora de voltar ao assunto. Disse há pouco que estava a ocorrer um engano. A meu juízo, os crucifixos existentes nas salas de julgamento do Tribunal lá não se encontram em reverência a uma das pessoas da Santíssima Trindade, segundo a teologia cristã, mas a alguém que foi acusado, processado, julgado, condenado e executado, enfim justiçado até sua crucificação, com ofensa às regras legais históricas, e, por fim, ainda vítima de pusilanimidade de Pilatos, que tendo consciência da inocência do perseguido, preferiu lavar as mãos, e com isso passar à História.

Em todas as salas onde existe a figura de Cristo, é sempre como o injustiçado que aparece, e nunca em outra postura, fosse nas bodas de Caná, entre os sacerdotes no templo, ou com seus discípulos na ceia que Leonardo Da Vinci imortalizou. No seu artigo “O justo e a justiça política”, publicado na Sexta-feira Santa de 1899, Rui Barbosa salienta que “por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz”... e, adiante, “não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”. Em todas as fases do processo, ocorreu sempre a preterição das formalidades legais. Em outras palavras, o processo, do início ao fim, infringiu o que em linguagem atual se denomina o devido processo legal. O crucifixo está nos tribunais não porque Jesus fosse uma divindade, mas porque foi vítima da maior das falsidades de justiça pervertida.

Não é tudo. Pilatos ficou na história como o protótipo do juiz covarde. É deste modo que, há mais de cem anos, Rui concluiu seu artigo, “como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Faz mais de 60 anos que frequento o Tribunal gaúcho, dele recebi a distinção de fazer-me uma vez seu advogado perante o STF, e em seu seio encontrei juízes notáveis. Um deles chamava-se Isaac Soibelman Melzer. Não era cristão e, ao que sei, o crucifixo não o impediu de ser o modelar juiz que foi e que me apraz lembrar em homenagem à sua memória. Outrossim, não sei se a retirada do crucifixo vai melhorar o quilate de algum dos menos bons.

Por derradeiro, confesso que me surpreende a circunstância de ter sido uma ONG de lésbicas que tenha obtido a escarninha medida em causa. A propósito, alguém lembrou se a mesma entidade não iria propor a retirada de “Deus” do preâmbulo da Constituição nem a demolição do Cristo que domina os céus do Rio de Janeiro durante os dias e todas as noites.

*Jurista, ministro aposentado do STF

08 de março de 2012 | N° 17002.

ARTIGOS

República e laicidade, por Eduardo K. M. Carrion*

A autonomia do Estado, da esfera pública, em face da religião, o princípio da laicidade, constituem um princípio republicano. Assegurado por nossa Constituição não apenas no seu Artigo 19, I. Já o Artigo 1º do Texto Fundamental, ao referir-se, em seu “caput”, a República Federativa do Brasil e a Estado democrático de direito, por si só afirma e reafirma o princípio da laicidade.

A mistura entre religião e política pode ser intensa ou leve, mas, de qualquer forma, confundir religião e política pode seguramente levar a desatinos. Tenham-se em conta os fundamentalismos religiosos, de qualquer espécie, de ontem e de hoje. Aliás, não era Albert Camus, prêmio Nobel da Literatura de 1957, que nos alertava que “a política não é a religião, ou, então, ela é inquisição” (O Homem Revoltado, 1951)? Outra coisa, as religiões, assim como a filosofia, as artes e outras expressões do gênio humano, inspirarem e alimentarem a atividade pública.

A separação entre Estado e Igreja, a utilização de signos e símbolos religiosos no espaço público, sempre foi objeto de debate e de controvérsia. Recentemente, este debate avivou-se em países da União Europeia. As soluções nem sempre são uniformes. De forma sumária e simplificada, temos, por um lado, o paradigma francês, cuja tendência é pela proibição, no espaço público, inclusive do uso individual de signos e símbolos religiosos demasiadamente ostensivos; por outro, a experiência inglesa, cuja tendência é pela garantia do uso individual de signos e símbolos religiosos. A solução francesa parece transformar o princípio da laicidade, princípio republicano como se disse, em laicismo, aqui no sentido de visão militante e radicalizada do princípio da laicidade; a solução inglesa, por sua vez, parece melhor equilibrar o princípio da laicidade com a liberdade de crença e a liberdade de culto.

A liberdade de crença e a liberdade de culto encontram-se asseguradas por nossa Constituição em diversos dispositivos, mais diretamente no Artigo 5º, VI, VII e VIII. Trata-se de direito fundamental, que deve não só ser afirmado como também garantido em qualquer sociedade democrática e pluralista. Mas daí a concluir que no espaço público, por iniciativa do próprio poder público ou por decisão de agentes públicos, sejam veiculados signos e símbolos religiosos, muitas vezes monopolizados por uma das crenças, vai uma longa distância.

*Professor titular de Direito Constitucional da UFRGS e da FMP

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