domingo, 23 de agosto de 2015

SOBRE A DOUTRINA, GUARDA COMPARTILHADA, PODER FAMILIAR E AS GIRAFAS. POR JOSÉ FERNANDO SIMÃO.



Sobre a doutrina, guarda compartilhada, poder familiar e as girafas


I – Girafas.

Foi sem nenhum espanto que li por intermédio da página do Facebook do amigo Fernando Araújo, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que há uma séria discussão jurídica no Brasil a respeito da alíquota tributária incidente sobre a importação de Girafas.
A notícia veiculada pela Folha de São Paulo[1] indica que, em razão do procedimento de cooperação entre zoológicos, no intuito de preservação da vida selvagem, três girafas doadas por um parque estadunidense (de Dallas) desembarcaram no Brasil.
Para “surpresa” de todos, a receita federal cobrou U$ 7,79 mil de PIS/COFINS e U$ 15 mil de ICMS sobre a importação, pois os animais foram avaliados em U$ 63 mil com base no contrato de seguro. Em suma, o Zoológico de Pomerode passou a ser devedor da importância de quase R$ 78 mil!
Digo que li sem nenhum espanto, pois o Brasil, há algum tempo, é o país da piada pronta, como diria meu xará José Simão.
Não entendo nada de Direito Tributário, não sei a natureza jurídica do PIS, COFINS e ICMS, não conheço os dispositivos do Código Tributário Nacional, mas uma coisa posso afirmar: importar Girafa não está sujeito à tributação. Simples assim.
E nesse clima de incredulidades jurídicas, em que o bom senso desapareceu e insiste em não regressar, o tema da guarda compartilhada merece uma reflexão.

II – Guarda compartilhada.

O Brasil teve, em menos de 10 anos, três regras diferentes quanto à guarda de filhos. Na redação original, o artigo 1583 informava que “no caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos”.
Depois, em 2008 (Lei 11.698) vem a primeira reforma e o dispositivo ganha a seguinte redação: “a guarda será unilateral ou compartilhada.
 “Parágrafo 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos:
I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II – saúde e segurança;
III – educação.
Parágrafo 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.”
Agora, a Lei 13.058 de 2014 altera novamente o dispositivo: artigo 1583, “parágrafo 2o  Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”. Os incisos são todos revogados.
O parágrafo primeiro do art. 1583 dispõe: “Parágrafo 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (artigo 1.584, parágrafo 5o) e, “por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
Por que tantas mudanças em tão pouco tempo? A razão simples. Graça no Brasil enorme confusão a respeito de guarda e poder familiar. Essa confusão, quiçá dolosa, tem hiper-expandido a noção de “guarda” e confundindo-a com poder familiar. Assim, como me disse Ricardo Calderón, é hora de densificar a lei da guarda compartilhada de 2014 e não mais reclamar de sua péssima qualidade (que é um fato inegável).
A doutrina ajuda com a distinção entre guarda e poder familiar. Poder familiar é a função que incumbe aos genitores com relação aos filhos menores, é direito inerente à paternidade e à maternidade que se configura como instituição em favor dos filhos, no interesse destes[2].
Poder familiar e guarda não são a mesma coisa. Entre elas há uma relação de todo e parte. Quando os pais vivem juntos, a guarda dos filhos se encontra subsumida ao poder familiar que se exerce conjuntamente por ambos os pais de forma dual e compartilhada[3].
Essa afirmação se confirma pela redação do Código Civil. Os artigos 1583 e 1584 não se localizam topologicamente no capítulo V que cuida do poder familiar. Guarda e poder familiar são coisas diversas e a confusão de parte da doutrina e dos julgados é exatamente diferenciar os conceitos.
A guarda é simples companhia fática de uma pessoa com relação à outra a qual a lei atribui efeitos jurídicos. Quem tem a guarda, tem, faticamente, a companhia do menor e, portanto, tem o dever de cuidar do menor e zelar por sua segurança. Isso e apenas isso.
O poder familiar é um quid e não um quantum. Nenhum dos genitores tem redução do poder familiar se, com o divórcio, a guarda for unilateral. O poder familiar não se abala com o divórcio ou separação fática do casal.
Se assim fosse, os filhos havidos fora do casamento (sem prévio vínculo conjugal), e reconhecidos pelo pai, estariam sob o poder familiar apenas da mãe, pois nunca houve conjugalidade entre os ascendentes.
Se a doutrina tiver dúvidas quanto a isto, basta a leitura do Código Civil com relação ao “exercício do poder familiar” conforme dispõe o artigo 1634.
Como ambos os pais têm o dever de dirigir a criação e educação dos filhos (artigo 1.634, I), há coisas que não tem qualquer relação com a guarda e independem de guarda compartilhada.
Assim, a decisão quanto à educação dos filhos abrange:
a) a escola em que estudam (método de ensino adotado pela escola);
b) acompanhar a vida escolar do menor, inclusive, denunciando eventual prática de bullying;
c) se farão ou não atividades complementares de cunho esportivo (futebol, ballet, judô) ou de cunho intelectual (ensino de idiomas, kumon) ou lúdico (artesanato, teatro);
d) a necessidade ou não de aulas particulares para reforço;
e) os livros que devem adquirir para seus estudos
f) visitas regulares aos estabelecimentos de ensino para terem conhecimento das questões referentes aos filhos.
Tudo isso decorre do poder familiar, e não da guarda. Seja ela compartilhada ou não têm ambos os pais o dever de cuidar de se filho e decidir estas questões.
Com relação à criação dos filhos temos:
a) a formação religiosa dos menores;
b) os cuidados com sua saúde física e psicológica, como, por exemplo, decisão sobre a necessidade de o filho ter auxílio de terapeuta, sobre qual o melhor tratamento em caso de doença, acesso a todas as informações médico-hospitalares;
c) decisão quanto a ida a acampamentos promovidos pela escola;
d) decisão quanto  viagens de lazer ou estudos, onde pode o menor ir, em que condições autoriza a viagem;
e) quais amigos são não boas companhias ao menor. Se certo amigo o maltrata há o dever de proteger a criança;
f) a questão se pode o menor sair à noite, que horas deve retornar, os lugares que deva frequentar;
g) prover diretamente ou em dinheiro meios de subsistência do filho, para que este tenha uma vida digna e saudável, o que significa o pagamento de alimentos em sentido jurídico.
Tudo isso decorre do poder familiar e não da guarda. Seja ela compartilhada ou não têm ambos os pais o dever de cuidar de se filho e decidir estas questões.
Da mesma forma, decorre do poder familiar o direito de conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem. Novamente, tem a direito independe de quem tema guarda.
A Lei 13.058, de 2014 acrescentou, ainda, ao artigo 1634, o inciso IV pelo qual compete a ambos os pais conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior. Disse o óbvio. Viajar é parte da formação do filho. Logo, a lei apenas reflete o temor que a criança seja vítima de rapto internacional
Os incisos VI a IX do artigo 1634 também esclarecem que guarda não se confunde com poder familiar, pois compete a ambos os pais: nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;  representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;  reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Todos esses direitos e deveres decorrem do poder familiar e independem da guarda.
Então cabe uma pergunta: qual é, então, a efetiva diferença entre a guarda unilateral e a compartilhada se o poder familiar permanece hígido e ambos os pais tem iguais direitos e deveres?
A questão da guarda compartilhada se resume a um único e relevantíssimo aspecto. A companhia física de criança, ou seja, o convívio entre pais e filhos. Na guarda unilateral, a mãe, normalmente, tem a guarda e o pai apenas o direito de visita quinzenal da criança aos fins-de-semana. Na guarda compartilhada há um convívio intenso e, em regra, mais saudável do pai com seus filhos.
Ela se estabelece por convívios (de maior ou menor intensidade) durante a semana, por exemplo. Assim, na guarda compartilhada o pai assume o dever de levar a criança à escola em certos dias da semana, de buscá-la em outros dias; de almoçar com ela e assim saber como foi seu dia, quais são seus problemas, angústias e inquietações, de estar com ela por mais tempo para a prática de atividades lúdicas, de lazer ou esportivas.
O pai deixa de ser o “papai do fim-de-semana sim, fim-de-semana não” e passa a ser pai em sua plenitude, sempre no melhor interesse do menor, por óbvio.
Guarda compartilhada implica que a criança durma na casa do pai? Não, não implica. Pode ocorrer, mas não é regra, é exceção. A criança deve ter uma noção única de residência. Se tiver idade compatível com o pernoite em casa paterna isso pode ocorrer.
Guarda compartilhada implica redução de pensão alimentícia? Não, pois o maior convívio não significa que a criança tenha menos necessidades. Ela não deixa de precisar de escola e seguro-saúde, por exemplo. Contudo, excepcionalmente, poderá haver redução, mas não em automática decorrência da guarda compartilhada e sim de prova cabal da menor necessidade do credor dos alimentos.
Por fim, não se deve esquecer que, no melhor interesse da criança, podemos ter um guardião que não tem poder familiar. É o caso dos pais que perdem o poder familiar e o avô assume a guarda (sentido de companhia) e a tutela como sucedâneo do poder familiar.

III – Doutrina

Se é verdade que muito se publica atualmente, se é verdade que o “mundo virtual” é espaço para que se diga tudo sobre qualquer coisa, também é verdade que negar utilidade às novas formas de divulgação da informação é algo pueril. Como, nas brincadeiras infantis, significa levar a bola para casa dizendo “não brinco mais”.
Explico. Leio com assombro nas redes sociais um número grande de pensamentos “pseudo-jurídicos” com erros de premissa, com desconhecimento do básico em termos de categoria jurídica, com fanfarronices retóricas e, por que não, eventualmente com um dolo subjacente em prol de interesses pessoais não confessados pelo autor do “texto jurídico”.
Dúvida não há quanto a um grupo muito sério de professores, juízes, membros do Ministério Público, acadêmicos de Direito e demais pensadores que contribuem, em muito, com a reflexão jurídica de qualidade.
Disse Paulo Lobo no III IBDCIVIL ocorrido em Recife recentemente: “Doutrina é o espaço de rigor de investigação. É o espaço privilegiado de leitura. Formação mais que informação. É criação e crítica. Sem isso, há apenas erudição de boa ou má qualidade".
Isso não significa, contudo, que a doutrina tem o “tempo” que tinha no passado para responder às demandas jurídicas prementes. O idílico mundo em que após 15 anos de reflexão uma nova obra sobre um tema era publicada, acabou. Mesmo porque os problemas do excesso de leis e de grande volume de demandas exige da doutrina rapidez intelectual para cumprir sua função de interpretar o sistema e permitir ao julgador mais clareza em sua decisão.
E como lembrou Luiz Edson Fachin, também no III IBDCIVIL, jurista que não tem dúvida não pesquisa, mas o jurista não pode se deixar dominar pela dúvida. Deve com ela conviver.
Assim, entre doutrina e opinião há uma grande diferença. Opinião é “chute”, é “sentimento”, é falta de seriedade no ambiente acadêmico. Contudo, a doutrina tardia, que se produz apenas quando as teses se consolidam, quando as decisões já foram tomadas e que usam dos julgados como forma de “avalizar” a opinião do autor, é tão pouco importante quanto à opinião.
Parte da doutrina brasileira, em atitude contemplativa, como lembra Lewis Carrol, por meio do Coelho em "Alice no País das Maravilhas", olha-se no espelho e diz “Oh dear! Oh dear! I shall be late”.
 Sobre a guarda compartilhada (Oh dear!), é hora e já estamos atrasados (I shall be late), de se extirpar a confusão reinante entre guarda e poder familiar. Essa confusão é danosa e seu fim é necessário para a aplicação adequada da Lei 13.058/14 no melhor interesse dos filhos.
Mas, para finalizar minha reflexão pergunto como se resolve o problema da tributação da Girafa? Eça de Queiroz indica, n’A Correspondência de Fradique Mendes a solução. Fradique, em uma de suas muitas viagens, traz uma múmia egípcia para presentear uma amiga. A autoridade alfandegária retém a múmia para se calcular o imposto de importação. Contudo a múmia, assim como as girafas de Pomerode, não se encontrava em nenhuma das categorias de mercadoria tributável. A solução de Eça de Queiroz deveria ser adotada pela Receita Federal brasileira:

“Ele, Fradique, sugerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a múmia, sem ligaduras e sem inscrições, dum arenque que viveu. Ter sido peixe ou escriba nada importava para os efeitos fiscais. O que a Alfândega via diante de si era o corpo duma criatura, outrora palpitante, hoje secada ao fumeiro. Se ela em vida nadava num cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, há quatro mil anos, arrolava as reses de Amnon e comentava os capítulos de fim de dia — não era certamente da conta dos Poderes Públicos. Isto parecia-lhe lógico
 

[2] Cristóbal Pinto Andrade, La Custodia Compartida. Madrid: Bosch, 2009, p. 35.
[3] Cristóbal Pinto Andrade, La Custodia Compartida. Madrid: Bosch, 2009, p.35.

José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

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