DA CONTROVERSA CATEGORIA DOS
ALIMENTOS INTUITU FAMILIAE OU
GLOBAIS.
Flávio
Tartuce
A categoria dos alimentos intuitu familiae ou globais ainda não é muito difundida no Direito
de Família Brasileiro, tendo sido abordada por este autor em parecer jurídico
apresentado em caso concreto, no ano de 2014, e publicado na Revista Científica
do IBDFAM n. 5.
Yussef Said Cahali foi um dos primeiros juristas a
analisar a categoria, demonstrando sua origem na criação jurisprudencial
brasileira. Pondera o ex-magistrado e professor a respeito do instituto que “a
pensão do marido à mulher e aos filhos pode ter sido fixada englobadamente, sem
que isto represente óbice à homologação do acordo”.[2] Em complemento, de acordo com as lições de
Rolf Madaleno, “alimentos intuitu familiae são aqueles arbitrados, ou
acordados de forma global, para todo o grupo familiar, sem pormenorizar e
separar as quotas de cada integrante da célula familiar, destinatária coletiva
da pensão alimentar. O montante dos alimentos é estabelecido em prol de todos
os familiares, e quando um deles deixa de ser credor dos alimentos pode até
ocorrer uma pequena redução da pensão, mas não uma divisão proporcional ao
número de alimentandos, sucedendo, se for o caso, um ajuste com a simples
readequação do valor dos alimentos”.[3] Maria Berenice Dias também
aborda o instituto, expondo o caráter global de sua fixação, “sem
individualizar a proporção de cada beneficiário. Normalmente são estipulados em
benefício da entidade familiar – ex-mulher e filhos –, sem ser indicado o
percentual em favor de cada um deles”.[4]
Desse modo, na linha da doutrina exposta, a fixação
dos alimentos com intuito familiar (intuitu familiae) tem como escopo
atender às finalidades de determinado grupo de pessoas que compõe a entidade
familiar. Em realidade, a fixação alimentar intuitu familiae não tem
qualquer amparo legal, não havendo norma jurídica que lhe dê fundamento.
Em reforço, a sua atribuição pode conduzir a
injustiças e a situações indesejáveis, especialmente tendo em vista o binômio
ou trinômio alimentar. Foi exatamente o que ocorreu no caso levado a consulta a
este autor, em sua atividade profissional. O valor alimentar foi fixado
inicialmente, por sentença, em cerca de vinte salários mínimos para a ex-esposa
e três filhos do alimentante.
Porém, sucessivamente, houve a exoneração alimentar da
esposa e de dois filhos que atingiram a maioridade, sem que houvesse a revisão
do montante global. Ao final, conforme condenação de primeira instância, a
filha menor do devedor estava recebendo uma verba alimentar de cerca de R$
15.000,00 (quinze mil reais), bem acima de suas necessidades, mesmo em se
mantendo um altíssimo padrão de vida, sob os pontos de vista econômico e
social. Diante da ausência de revisão da sentença pelo juízo monocrático, essa
acabou por ser reformada pela segunda instância, reduzindo-se o valor a próximo
da metade dessa quantia.
Ora, constitui premissa antiga a afirmação de que os
alimentos têm caráter personalíssimo em favor do credor da pensão. Desse modo,
a fixação dos alimentos deve levar em conta as características de quem os
pleiteia, tendo natureza essencialmente intuitu personae. Essa premissa,
aliás, é essencial para a atribuição da pensão alimentícia, tendo como
parâmetro a necessidade do credor. No âmbito da jurisprudência, vários arestos
reconhecem tal caráter pessoal e infungível, tanto em relação ao credor quanto
no que diz respeito ao devedor (por todos: STJ, AgRg. no REsp 981.180/RS, Rel.
Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 15/12/2010).
Além do caráter personalíssimo, não se olvide que a
obrigação de alimentos é divisível, em regra, o que é retirado de vários
diplomas do sistema legal da codificação material de 2002, especialmente da
segunda parte do seu art. 1.698, dispositivo que tem a seguinte dicção: "se
o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de
suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato;
sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na
proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão
as demais ser chamadas a integrar a lide". A fixação dos alimentos intuitu
familiae quebra com essas características técnicas consolidadas da pensão
alimentícia.
Em casos de sua atribuição, o grupo familiar passa a
ser dotado de uma solidariedade ativa convencional, pois, como elucida Maria
Berenice Dias, “como o crédito é em prol de todos, dispõe cada um de
legitimidade para cobrança da integralidade de seu valor. Ainda que um ou mais
filhos atinjam a maioridade, pode a genitora propor a execução para cobrança da
totalidade do débito”.[5] O caráter personalíssimo
da pensão é igualmente quebrado diante do fato de ser o montante fixado a favor
de um grupo de pessoas, com características próprias analisadas em conjunto, e
não isoladamente.
A este autor não parece haver qualquer ilicitude na
fixação dos alimentos intuitu familiae, pois a solidariedade pode ter
origem na lei ou na vontade das partes, na esteira do art. 265 do Código Civil.
Em outras palavras, é perfeitamente possível afastar, por convenção, o caráter
personalíssimo e divisível da obrigação de alimentos. Todavia, em casos de
exagero, é viável rever o valor antes fixado a título de alimentos.
A propósito da possibilidade dessa diminuição a partir
de uma mudança estrutural no binômio ou trinômio alimentar, mesmo que fixada a
verba intuitu familiae, cabe trazer à colação decisum do Tribunal
de Justiça de São Paulo. Trata-se de acórdão da sua 6ª Câmara de Direito
Privado, proferido em 22 de outubro de 2009, na Apelação com Revisão n.
680.852-4/2-00, que teve como relator o Desembargador Vito Guglielmi. No caso,
houve a exoneração da pensão alimentar quanto a uma filha maior do alimentante,
então com vinte e seis anos de idade, que havia se graduado no curso de Direito
e obtido a carteira de advogada.
Conforme consta da ementa do aresto, foi reconhecida a
exoneração parcial subjetiva da pensão, o que deveria ser reconhecido mesmo se
os alimentos fossem fixados intuitu familiae. Merece ser citado o
seguinte trecho do julgamento, que analisa o tema relativo ao binômio ou
trinômio alimentar: “nesse tema dos alimentos, como venho sustentando, o dever
deve ser lido, sempre, na perspectiva da dupla análise da necessidade daquele
que pleiteia o auxílio e da possibilidade daquele que o presta, fatores
amalgamados sobre a denominação, já consagrada pela jurisprudência, de ‘binômio
necessidade-possibilidade’, o qual deve nortear, em qualquer caso, a
determinação, revisão ou exoneração da prestação fixada. Sob essa ótica, de um
lado, tem-se que, no caso, as necessidades da ré devem ser rigorosamente
comprovadas. No tocante ao aspecto prático da exoneração, sobreleva que os
presentes alimentos, embora fixados em valor único para os três coalimentados,
guardam nítida relação de proporção e divisibilidade, não se podendo falar que
a fixação haja se dado intuitu familiae a impedir a pleiteada exoneração
parcial subjetiva. Assim, pelos termos da própria sentença originária que os
fixou (fls. 81) e bem das decisões posteriores de revisão (fls. 85/105). Aliás,
ainda que houvessem sido os alimentos fixados intuitu familiae, tal
atributo não impediria a procedência do pedido de exoneração do dever alimentar
em relação a um dos coalimentados e tampouco a redução proporcional da
prestação global fixada. Como se vem entendendo, a divisibilidade da prestação
alimentar é característica presente até mesmo quando não há menção expressa à
destinação”.
Sucessivamente, o Desembargador Relator Vito Guglielmi
cita aresto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no mesmo sentido, que
concluiu: “a obrigação alimentar, ainda que arbitrada intuitu familiae, não perde seu caráter de divisibilidade. Não
havendo previsão em contrário, na obrigação subjetivamente divisível, deve
prevalecer a presunção legal de igualdade das quotas (art. 257 do Código Civil
de 2002). A exoneração dos alimentos, ante a ausência de convenção em
contrário, deve ocorrer somente quanto às quotas dos ex-credores, em igual
proporção, remanescendo o crédito proporcional da credora remanescente (TJMG,
Apelação cível n. 1.0016.07.076039-8/001, Alfenas, 2ª Câmara Cível, Rel.
Caetano Levi Lopes, julg. 24/03/2009)”.
Cabe ainda destacar, do acórdão paulista, o trecho em
que se analisa a necessidade de diminuição do quantum global, a partir
do binômio alimentar, tendo em vista a exoneração parcial de uma das filhas do
alimentante: “destarte, a exoneração do dever alimentar em relação à demanda,
com a consequente redução proporcional do valor global da prestação, revela-se
mesmo adequada ante a comprovação da ausência de necessidade da alimentada de
um lado e, ainda, da prova indiciária, de outra banda, da redução da capacidade
financeira do autor, consubstanciada na existência de diversas restrições de
crédito em seu nome”.
Conforme se verifica, os dois acórdãos citados seguem
a linha de necessidade de revisão dos alimentos com função familiar, na linha
das premissas-regras do caráter personalíssimo e da divisibilidade da obrigação
de alimentos. Em resumo, é imperioso rever o valor global intuitu familiae
quando há alteração substancial do binômio ou trinômio alimentar, especialmente
tendo como pano de fundo fundamental as necessidades do alimentante.
Eis aqui uma correta e justa aplicação do princípio da
razoabilidade em sede de alimentos, a demonstrar a evolução do binômio para o
trinômio alimentar, como temos destacado em nossas obras, aulas e palestras
sobre o assunto.
[2] CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 221.[3] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense,
2011. p. 946
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p.
550-551
[2] CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 221.[3] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense,
2011. p. 946
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p.
550-551
Nenhum comentário:
Postar um comentário