sexta-feira, 28 de outubro de 2016

COLUNA DO MIGALHAS DE OUTUBRO. DA EXTRAJUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. TERCEIRA PARTE. OUTRAS FORMAS DE SOLUÇÃO.

DA EXTRAJUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. TERCEIRA PARTE. OUTRAS FORMAS DE SOLUÇÃO.



Flávio Tartuce[1]



Estamos analisando, neste canal, os enunciados doutrinários aprovados na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, evento promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), entre os dias 22 e 23 de agosto de 2016, sob a coordenação geral do Ministro Luis Felipe Salomão. Após a abordagem dos temas da mediação e da arbitragem, e suas projeções ao Direito de Família e das Sucessões, serão estudadas algumas propostas da comissão denominada Outras Formas de Solução de Conflitos que, sob a coordenação do Professor Joaquim Falcão, aprovou sugestões de incremento de políticas públicas e privadas para a desjudicialização dos conflitos.  
A citada comissão teve uma faceta multidisciplinar, gerando enunciados sobre temas diversos. Entre eles, cabe destacar ementa sobre o “bullying escolar, com a seguinte redação: “o Poder Público e a sociedade civil incentivarão a facilitação de diálogo dentro do âmbito escolar, por meio de políticas públicas ou parcerias público-privadas que fomentem o diálogo sobre questões recorrentes, tais como: bullying, agressividade, mensalidade escolar e até atos infracionais. Tal incentivo pode ser feito por oferecimento da prática de círculos restaurativos ou outra prática restaurativa similar, como prevenção e solução dos conflitos escolares” (Enunciado n. 52). Ou, ainda, o Enunciado n. 51, que trata do superendividamento, problema que atinge muitas famílias brasileiras neste momento de profunda crise econômica: “o Estado e a sociedade deverão estimular as soluções consensuais nos casos de superendividamento ou insolvência do consumidor pessoa física, a fim de assegurar a sua inclusão social, o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana”.
Quanto ao Direito de Família, proposta importante e que acabou aprovada, diz respeito às práticas colaborativas, mecanismo de mediação e de conciliação que ganha paulatina força prática no âmbito do Direito Brasileiro. Conforme o Enunciado n. 55, “o Poder Judiciário e a sociedade civil deverão fomentar a adoção da advocacia colaborativa como prática pública de resolução de conflitos na área do direito de família, de modo a que os advogados das partes busquem sempre a atuação conjunta voltada para encontrar um ajuste viável, criativo e que beneficie a todos os envolvidos”. No Brasil, essa prática é desenvolvida, entre outros, por Adolfo Braga Neto, Mônica Gama e Sandra Bayer. Uma das principais características da técnica colaborativa é a inserção de uma cláusula de não litigância, que afasta a possibilidade de os advogados envolvidos participarem de eventual e posterior ação judicial relativa ao caso debatido.
Igualmente com impacto ao Direito de Família, o Enunciado n. 78 estabelece uma recomendação aos juízes das Varas de Família dos Tribunais onde já tenham sido implantadas as oficinas de parentalidade, no sentido de que as partes sejam convidadas a delas participar, antes da citação nos processos de guarda, visitação e alienação parental, como forma de fomentar o diálogo e de prevenir litígios futuros. Essas oficinas visam a auxiliar famílias que enfrentam conflitos relacionados ao fim do casamento ou da união estável, em questões dedicadas como as citadas no enunciado. Pensamos que, com o seu incremento, atende-se a regra prevista no art. 694 do Novo Código de Processo Civil, segundo o qual “nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação”.
Quanto ao Direito das Sucessões, dois enunciados merecem comentários. O primeiro deles trata do planejamento sucessório, preceituando que deve ser estimulado pelo Poder Judiciário, “com ações na área de comunicação que esclareçam os benefícios da autonomia privada, com o fim de prevenir litígios e desestimular a via judiciária”. O planejamento sucessório há muito tempo é utilizado no Brasil, por meio de contratos de doação, usufruto, pactos antenupciais, testamentos e estabelecimentos de empresas com o fito de realizar a administração dos bens familiares e projetar eventuais divisões de bens.
Porém, como temos destacado com frequência, há um entrave legal que pode inviabilizar o planejamento sucessório, qual seja a regra que veda os pactos sucessórios ou pacta corvina. Como está previsto no art. 426 da codificação material, não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva, sob pena de sua nulidade virtual (art. 166, inciso VII, segunda parte, do CC/2002). A propósito desse entrave, já entendeu o Superior Tribunal de Justiça pela nulidade absoluta de acordo fiduciário celebrado entre membros de uma família. Nos termos do acórdão, “a eficácia da cláusula de destinação dos rendimentos produzidos pelos ativos líquidos da sociedade (comandita por ações), após a morte dos fiduciantes, estava condicionada à sua inclusão no testamento dos mesmos, em face do disposto no art. 1.089, CC, que impede seja objeto de contrato herança de pessoa viva” (STJ, AgRg no Ag 375.914/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/12/2001, DJ 11/03/2002, p. 263). O dispositivo citado é do Código Civil de 1916, correspondente ao atual art. 426 do Código Civil de 2002.
A propósito desse entrave, cabe destacar que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) constituiu uma comissão especial para a elaboração de propostas de alterações do Direito das Sucessões Brasileiro, com a formação de quatro grupos de trabalhos. A primeira reunião da comissão ocorreu no último dia 29 de setembro de 2016, quando do VII Congresso Paulista de Direito de Família e Sucessões, na Associação dos Advogados de São Paulo. Quando desse primeiro encontro, uma das sugestões que surgiram foi justamente a de se colocar uma ressalva quanto à possibilidade de mecanismos sucessórios por meio de pacto antenupcial, em um eventual e futuro parágrafo único do art. 426 do Código Civil.
Voltando aos enunciados da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, a última proposta a ser abordada é a de n. 77, com a seguinte redação: “havendo registro ou expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial”.
Após muito debate na plenária do evento, foi aprovado texto conciliador frente ao Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo mesmo Conselho da Justiça Federal em 2015, a saber: “após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”. Na verdade, houve uma ampliação do texto anterior, cabendo o inventário extrajudicial, por escritura pública, se o testamento foi registrado perante o juízo ou se este autorizar expressamente a via administrativa.
Os dois enunciados relativizam a regra prevista no atual art. 610 do CPC/2015 – equivalente em parte ao art. 982 do CPC/1973 –, segundo a qual em havendo testamento não é possível o inventário extrajudicial, por escritura pública, mas apenas a via judicial. Parte considerável da doutrina opina que o texto seja mitigado, caso de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Zeno Veloso e Maria Berenice Dias.
A propósito de sua mitigação, houve julgamento pela 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo, tendo sido prolatada decisão pelo magistrado Marcelo Benacchio, em abril de 2014. A dúvida havia sido levantada pelo 7º Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com pareceres favoráveis à dispensa da inexistência de testamento para que a via extrajudicial fosse possível, por parte de representante do Ministério Público e do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo; este último apoiado em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Ponderou o julgador, naquela ocasião, que as posições que admitem o inventário extrajudicial havendo testamento “são entendimentos respeitáveis voltados à eficiente prestação do imprescindível serviço público destinado à atribuição do patrimônio do falecido aos herdeiros e legatários. Ideologicamente não poderíamos deixar de ser favoráveis a essa construção na crença da necessidade da renovação do Direito no sentido de facilitar sua aplicação e produção de efeitos na realidade social, econômica e jurídica”. No entanto, seguindo outro caminho, deduziu o magistrado no final da sua sentença que “o ordenamento jurídico aproxima, determina e impõe o processamento da sucessão testamentária em unidade judicial como se depreende dos regramentos atualmente incidentes e dos institutos que cercam a sucessão testamentária; daí a razão da parte inicial do art. 982, caput, do Código de Processo Civil iniciar excepcionando expressamente a possibilidade de inventário extrajudicial no caso da existência de testamento independentemente da existência de capacidade e concordância de todos interessados na sucessão; porquanto há necessidade de se aferir e cumprir (conforme os limites impostos à autonomia privada na espécie) a vontade do testador, o que não pode ser afastado mesmo concordes os herdeiros e legatários”.
Com o devido respeito a essa decisão anterior, sempre sustentamos que a regra que impõe o inventário judicial em havendo testamento deve ser, de fato, relativizada, em prol de uma saudável desjudicialização. Essa mitigação deve ocorrer principalmente nos casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado. Nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do art. 8º do Novo CPC, o fim social da norma que instituiu a possibilidade do inventário extrajudicial é a redução de formalidades e de burocracias.
Em sentido contrário àquela decisão anterior, neste ano de 2016, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo passou a aplicar exatamente o teor do Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil, conforme o seu Provimento n. 37. Nas palavras da decisão do Desembargador-Corregedor Manoel Pereira Calças, “diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário. Poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, também, nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros. Nas hipóteses do subitem 129.1, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, e o inventário far-se-á judicialmente”.
Reafirme-se que o novo enunciado aprovado vai nessa linha e amplia o sentido do anterior, sendo possível dispensar a via judicial do inventário, em havendo testamento, também se houver expressa autorização do juízo. Esperamos que novas decisões judiciais surjam nesse sentido, assim como ocorreu no Tribunal de Justiça de São Paulo, concretizando a desjudicialização, uma das tendências atuais do nosso Direito e um dos regramentos básicos informadores do Novo Código de Processo Civil.



[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico

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