quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC. DA NECESSIDADE URGENTE DE O STF ENCERRAR O JULGAMENTO. COLUNA DO MIGALHAS DO MÊS DE NOVEMBRO


  
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC.
DA NECESSIDADE URGENTE DE O STF ENCERRAR O JULGAMENTO.



Flávio Tartuce[1]



O Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2015, iniciou o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que trata dos direitos sucessórios do companheiro. A norma tem a seguinte redação, tão criticada por parte considerável dos doutrinadores brasileiros: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”.
Por maioria de votos, a Corte entendeu pela equiparação sucessória entre o casamento e a união estável, para os fins de repercussão geral (STF, Recurso Extraordinário n. 878.694/MG, Relator Ministro Luís Roberto Barroso). Nos termos do voto do relator, “não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição”.
No total, já são sete votos na linha da premissa fixada pelo Ministro Barroso. Além dele, os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia seguiram a tese para fins de repercussão geral, com o seguinte texto: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
Se prevalecer tal decisão, além da retirada do sistema do art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima. Assim, concorrerá com os descendentes, o que depende do regime de bens adotado. Concorrerá também com os ascendentes, o que independe do regime. Na falta de descendentes e de ascendentes, receberá a herança sozinho, como ocorre com o cônjuge, excluindo os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos). 
O Ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, não encerrando o julgamento, o que não nos impede de afirmar que a posição está praticamente firmada naquele Tribunal Superior, tendo impacto para todos os casos que julgarem o tema, em todas as esferas. Desse modo, para a prática do Direito das Sucessões – e também para o Direito de Família, pensamos –, passa a ser firme e majoritária a premissa da equiparação da união estável ao casamento, igualdade também adotada pelo Novo CPC, em vários de seus dispositivos e para os devidos fins processuais.
Quanto à modulação dos efeitos do decisum, de acordo também com o Ministro Relator, “é importante observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública” (STF, Recurso Extraordinário n. 878.694/MG, Relator Ministro Luís Roberto Barroso). A previsão visa à certeza e à segurança das relações jurídicas, atingindo apenas as novas divisões patrimoniais sucessórias.
Pois bem, sempre estivemos filiados à corrente que via inconstitucionalidade apenas no inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por colocar o convivente em posição de desprestígio frente aos ascendentes e colaterais até o quarto grau, recebendo um terço do que esses recebessem. Alguns Tribunais Estaduais já tinham reconhecido a inconstitucionalidade desse último diploma, por meio do seu Órgão Especial, caso do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Todavia, o momento é de aceitar a decisão do STF, conforme expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno Veloso e Giselda Hironaka, ícones do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e citados no voto condutor do Ministro Barroso. Assim, a inconstitucionalidade atinge toda a norma, e não apenas o inciso III do comando. A principal vantagem do julgamento é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada no Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates infindáveis sobre a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do CC. Reiteramos que, como outros membros do IBDFAM, caso de José Fernando Simão, não víamos inconstitucionalidade em todo o comando, mas apenas no inciso III da norma. De toda sorte, pensamos ter sido a solução saudável, trazendo mais certeza para os casos futuros.
O conteúdo do julgamento até aqui prolatado tem outras grandes vantagens. Primeiro, houve o afastamento definitivo da hierarquização das famílias, o que era adotado em alguns Tribunais Estaduais, caso da decisão do Órgão Especial do Tribunal Paulista que reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790 por tal argumento. Segundo, reconheceu-se expressamente a afetividade como valor jurídico e como princípio do Direito de Família Contemporâneo, o que igualmente foi adotado no julgamento da repercussão geral da parentalidade socioafetiva (publicado no Informativo n. 840 do STF). Terceiro, e por fim, merece destaque a interpretação civil-constitucional que orientou o julgamento, com a incidência dos princípios da igualdade e da dignidade humana, de forma imediata, às relações privadas (eficácia horizontal). Como temos sustentado em várias ocasiões, essas premissas formam diretrizes fundamentais para a interpretação do Direito de Família Contemporâneo.
Todavia, há uma necessidade urgente e inafastável, qual seja a de o Supremo Tribunal Federal encerrar o julgamento. Imaginemos quantos inventários, sejam judiciais ou extrajudiciais, estão parados, aguardando o deslinde da questão. Como destacou Anderson Schreiber em artigo recente, “todos os campos do Direito demandam segurança jurídica, mas sua exigência é ainda maior no Direito das Sucessões. A transmissão do patrimônio, por meio do seu fatiamento entre múltiplos herdeiros, é fonte frequente de conflitos com os quais ninguém ganha: a longa demora em inventários prejudica os herdeiros, que ficam privados dos bens a que têm direito; prejudica o Estado, que fica privado dos tributos incidentes; e prejudica diretamente a sociedade, abarrotando o Poder Judiciário com processos que duram, em alguns casos, mais de uma década. É usual na advocacia sucessória a percepção de que uma família só pode se dizer realmente unida se já tiver passado por um inventário, tamanha a sua capacidade de fomentar disputas” (Sucessão do companheiro no STF. Disponível em: . Acesso em 25 de novembro de 2016).
Ao final de seu texto, o jurista pede que a questão seja resolvida definitivamente, pleito que também almeja este texto. Conforme suas palavras, “o certo, todavia, é que, iniciado o julgamento da matéria, tornou-se temerário realizar partilhas judiciais ou extrajudiciais nesse período em que a Suprema Corte brasileira encontra-se na iminência de definir sua posição sobre o tema, em sentido oposto à literalidade do art. 1.790 do Código Civil. Ao mesmo tempo, com o julgamento em aberto, ainda é teoricamente possível que os Ministros revejam suas posições, desconstituindo a aparente maioria. Diante disso, há numerosas sucessões paralisadas em cartórios brasileiros, que vão se avolumando a cada dia, enquanto todos aguardam ansiosamente a palavra final do STF. (...). Se ao Direito das Sucessões não compete, repita-se, proliferar incertezas, o mesmo se aplica à atuação dos seus intérpretes, convindo ao STF proferir, o quanto antes, sua decisão final sobre essa matéria tão candente” (SCHREIBER, Anderson. Sucessão do companheiro no STF. Disponível em: . Acesso em 25 de novembro de 2016).
Além dessa necessidade de encerrar o julgamento do tema, colocando fim a mais de treze anos de debates, é preciso que o STF defina outros pontos importantes na sua tese final, para fins de repercussão geral. O primeiro deles diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. Até o presente momento não há qualquer menção a tal aspecto na tese fixada, podendo ser extraída tal conclusão apenas do voto condutor.
O segundo problema é o direito real de habitação do convivente, também debatido de forma constante nos últimos anos. Sendo certo que prevalecerá a afirmação de que o companheiro tem tal direito, qual seria a sua extensão? Terá esse direito porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/1996? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório, os dois dispositivos têm conteúdos distintos, sendo necessário pacificar mais essa discussão. São questões que a nossa Corte Máxima deve responder. E o mais rápido possível.



[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico

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