terça-feira, 1 de novembro de 2016

TESTAMENTO CONJUNTIVO. ARTIGO DE ZENO VELOSO

TESTAMENTO CONJUNTIVO
Zeno Veloso.
Doutor Honoris Causa pela Universidade da Amazônia. Diretor do IBDFAM para a Região Norte. Professor da UFPA e da UNAMA. Tabelião em Belém.

            João Monteiro estava viúvo e tinha dois filhos de seu casamento. Passado algum tempo, conheceu Mariazinha, e passou a conviver com ela, vindo os dois, em seguida, a casar-se pelo regime da comunhão parcial. Ela, por sua vez, tinha um filho de relacionamento anterior.
            Resolveram os dois fazer testamento, determinando João que a parte disponível de seus bens (metade disponível) caberia à sua mulher, Mariazinha, e resolvendo esta que a metade de seus bens deveria caber a seu marido, tudo de acordo com o art. 1.789 do Código Civil. O casal se dirigiu a um cartório, e tudo foi explicado ao notário. O desejo deles era o de fazer um só e único testamento, até para não ter de pagar as custas de duas escrituras. Mas o tabelião ponderou que não podia atender ao objetivo, pelo menos na forma que pretendiam, pois a lei brasileira proíbe o testamento conjuntivo, também chamado mancomunado ou de mão comum.
            No Código Civil brasileiro, art. 1.863, diz-se: "É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo". A proibição é tradicional em nosso sistema, e já vinha consignada no art. 1.630 do Código Civil de 1916. Não permite também o testamento conjunto o direito francês, e, inspirado neste, o italiano, português, espanhol, japonês, argentino, chileno. Mas, afinal, que é o testamento conjuntivo, que tantas legislações inadmitem?
            Analisei o aludido art. 1.863 no Código Civil Comentado (obra coletiva, coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva, primitivo coordenador Ricardo Fiúza, Editora Saraiva, cuja 10ª edição acaba de sair, página 1962). Disse, ali, que o testamento conjuntivo, conjunto ou de mão comum, é o feito no mesmo ato, por duas ou mais pessoas. A proibição de tal negócio jurídico é substancial, seja o testamento simultâneo - se os dois testadores fazem disposições em favor de terceiro -, seja recíproco - se um testador favorece o outro, e vice-versa -, seja correspectivo - além da reciprocidade, cada testador beneficia o outro na mesma proporção em que este o tiver beneficiado, caso em que a interdependência, a relação causal entre as disposições, é mais intensa.
            O testamento é um negócio jurídico de última vontade, unilateral, unipessoal, personalíssimo, essencialmente revogável; o testamento conjuntivo acaba por arranhar esses princípios, especialmente o da liberdade de testar, de determinar o que se quer para quando morrer, e de, a qualquer momento, fazer outro testamento (alterar, modificar, revogar o anterior).
            Note-se bem: o que a lei proíbe é o testamento de duas ou mais pessoas no mesmo instrumento, no mesmo documento, na mesma escritura, enfim, no mesmo ato. Nada impede que duas pessoas, em atos separados, ainda que na mesma data, no mesmo livro notarial, perante o mesmo tabelião, façam testamentos (assim, no plural) dispondo em favor de um terceiro (um sobrinho, um amigo delas, por exemplo), ou mesmo em proveito recíproco (uma nomeia a outra herdeira, e vice-versa). Por sinal, isso ocorre frequentemente, quando os testadores são marido e mulher, ou se trata de casal homoafetivo. Na Alemanha, diferentemente dos sistemas jurídicos que acima citei, o testamento conjuntivo é permitido, no caso de ser outorgado pelos cônjuges (BGB, art. 2.265).
            Há algum tempo, julgando o Recurso Extraordinário nº 93.603-3/60, relator Ministro Neri da Silveira, o STF decidiu que não há nulidade, não se trata de testamento conjuntivo, a hipótese de testamentos públicos feitos por marido e mulher, na mesma data e local e perante as mesmas testemunhas, se os instrumentos são distintos, se as escrituras são autônomas, se os atos são independentes.
            O Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM nomeou uma comissão para fazer um estudo a respeito do Direito das Sucessões, no Código Civil, para o fim de apresentar as alterações legislativas que forem oportunas, cabíveis. Minha opinião é de que as sugestões sejam bem poucas, pontuais. Venho meditando a respeito, ainda não estou decidido, mas penso em apresentar uma proposta de alteração no Código Civil, admitindo o testamento conjuntivo (num só e mesmo ato), se os outorgantes forem os cônjuges, ou companheiros, e desde que fique garantida a liberdade de cada testador revogar livremente o seu testamento.
         P.S.1 Num grupo de amigos, reunidos no Museu da Cerveja, que fica no histórico e tradicional Terreiro do Paço, em Lisboa, a conversa chegou às eleições municipais, no Brasil, e alguém perguntou como o eleitor se identifica no momento em que se apresenta para votar. Alguém disse que ele deve portar um documento oficial de identidade, que pode ser a carteira de identidade, expedida pela Polícia Civil, a carteira nacional de habilitação, ou outro documento oficial, desde que tenha a fotografia do portador. Nessa altura, um português indagou: "desculpe, mas não há a obrigação de se tirar o título de eleitor?" Um brasileiro respondeu: "sim, existe o título de eleitor, expedido pela Justiça Eleitoral". O português insistiu: "E por que, então, não se exibe o título de eleitor, quando se vai votar?".  O brasileiro explicou: "Por que no título de eleitor não há a fotografia do portador". O português, implicante, quis saber: "Ora essa, e por que não se coloca a fotografia nesse título de eleitor?". O brasileiro disse: "porque a lei não prevê a fotografia nesse documento". O lusitano, cada vez mais curioso, quis saber: "Para que serve, então, o título de eleitor"? E o brasileiro, angustiado pelo rumo da conversa: "Não sei, meu senhor. Vamos tomar uma taça de vinho e pedir uns pasteis de bacalhau". E assim fizeram. Pastel de bacalhau, lá, é o que chamamos, cá, bolinho de bacalhau. Mas, aqui, para nós, não é mesmo um absurdo termos um título de eleitor, que tem de ficar em casa, guardado, quando se vai exercer o direito de voto?...

         P.S.2 Semana passada, mencionei o artigo de André Malcher Meira, que conclui que o novo CPC, ao estabelecer que juízes e tribunais devem observar a jurisprudência, inspirou-se, antes, no antigo Direito Romano, de que na experiência do direito norte-americano, como alguns entusiastas do "common law" defendem. O tema teve dois importantes leitores, os mestres Francisco Caetano Mileo e Michel Ferro e Silva, da antiga e nova geração de processualistas paraenses, que, pelo número e qualidade, são admirados em todo o país, e um símbolo deles é meu saudoso professor Júlio de Alencar.                  

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