quarta-feira, 30 de agosto de 2017

DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO APLICÁVEL AOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO. COLUNA DO MIGALHAS DO MÊS DE AGOSTO

DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO APLICÁVEL AOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO[1]
Flávio Tartuce[2]
Como demonstrado em texto anterior, publicado neste canal, muitos acórdãos da recente jurisprudência brasileira têm afastado a indenização por abandono afetivo, não obstante o seu reconhecimento quando do acórdão prolatado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1.159.242/SP, do ano de 2012. Diante desse panorama recente, recomendamos naquele artigo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notamos, também em nossa pesquisa, que muitos dos arestos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização por abandono afetivo.
A nossa impressão, conforme as palavras finais do texto, foi no sentido de que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo pelo Tribunal da Cidadania. Porém, no âmbito das Cortes Estaduais há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. E muitos deles o fazem com base no prazo prescricional a ser aplicado à espécie, o que aqui pretendemos abordar.
De início, esclareça-se que, por se tratar de demanda reparatória de danos, o prazo eventualmente aplicado é de prescrição, e não de decadência. Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade, em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts. 178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da anulabilidade.
Pois bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem essa vertente, do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita ao caso concreto. Vejamos cinco deles, dos últimos dois anos e de cada uma das regiões do País.
De início, do Tribunal de Justiça do Paraná: “Ação reparatória de danos morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CCB. Autores absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional com o alcance da maioridade” (TJPR, Apelação cível n. 1601201-4, Ipiranga, Décima Câmara Cível, Relª Desª Ângela Khury Munhoz da Rocha, julgado em 08/06/2017, DJPR21/07/2017, pág. 130). Do Tribunal de São Paulo: “Incidência do prazo de três anos previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o artigo 2.028 do mesmo diploma legal” (TJSP, Apelação n. 0013103-59.2012.8.26.0453, Acórdão n. 9425346, Pirajuí, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 04/05/2016, DJESP 17/05/2016).
Da Região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no sentido de que “a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Além disso, fundamenta-se no descumprimento, pelo réu/recorrido, das obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples alegação de que o requerido/apelado não cumpriria as obrigações relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a maioridade plena do filho ou com a emancipação deste” (TJDF, Apelação cível n. 2015.01.1.064396-6, Acórdão n. 101.8971, Quarta Turma Cível, Rel. Des. Rômulo de Araújo Mendes, julgado em 11/05/2017, DJDFTE 30/05/2017).
Seguindo, do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: “a pretensão de reparação civil por abandono afetivo nasce quando cessa a menoridade civil do autor, caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância, estando sujeita ao prazo prescricional de três anos” (TJPB, Recurso n. 0028806-67.2013.815.0011, Quarta Câmara Especializada Cível, Rel. Des. Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, DJPB 11/04/2016). Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que “a pretensão de indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase sete anos após o autor atingir a maioridade” (TJAM, Apelação n. 0622496-32.2013.8.04.0001, Primeira Câmara Cível, Relª Desª Maria das Graças Pessoa Figueiredo, DJAM 17/08/2017, p. 12).
Como se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, o que é cessado quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra, enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação, segundo a qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono afetivo acaba por vencer quando o filho completa vinte e um anos de idade (18 anos + 3 da prescrição).
Entre colegas professores consultados, assim se posicionam Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano de Brito, João Ricardo Brandão Aguirre, Maurício Bunazar, Marcelo Truzzi Otero, Eduardo Busatta, Fábio Azevedo, Alexandre Gomide, Maurício Andere Von Bruck Lacerda, Roberto Lima Figueiredo, Marcelo Junqueira Calixto, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Fernando Carlos de Andrade Sartori e Marcos Ehrhardt Júnior. No âmbito do STJ existe acórdão da Terceira Turma concluindo exatamente dessa forma: “Indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Prescrição. Aplicação do prazo prescricional trienal previsto no artigo 206 § 3º, inciso V, do CC/2002. Precedentes deste Tribunal” (STJ, AREsp 842.666/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 29/06/2017).
Porém, é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “os direitos subjetivos estão sujeitos a violações, e quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o ‘pátrio poder’. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto a compensação por danos morais” (STJ, REsp 1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 06/09/2012).
Com o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível. Primeiro, pelo fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo.
Em verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos casos de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em tais situações. Assim, por exemplo, entre os mais recentes, com citação de outros acórdãos: “as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28.02.2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 01.07.2011” (STJ, AgRg no REsp 1.4981.67/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 18/08/2015, DJe 25/08/2015). Com tom suplementar de ilustração, entre os primeiros precedentes: “o dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática” (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ17/02/2003).
Em reforço, parece-nos equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata, terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada teoria, desenvolvida entre nós por Câmara Leal e José Fernando Simão, o prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata que não se pode dizer qual o termo a quo para o início do prazo. Os danos são continuados, não cessam, não saem da memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada. Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém esquece o desprezo de um pai. Entre os colegas consultados, essa é a opinião de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Marcos Jorge Catalan e Cesar Calo Peghini.
A respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção, adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico. Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece, momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos. Nesse sentido, conforme se retira de recente julgamento do Tribunal Paulista, “no caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo” (TJSP, Apelação n. 1008272-98.2015.8.26.0564, Acórdão n. 9428000, São Bernardo do Campo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Pedro de Alcântara, julgado em 11/05/2016, DJESP 19/05/2016). Como se nota, o julgado admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo após a maioridade, o que conta com o meu apoio.
Por derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do art. 2.028 do CC, in verbis: “serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”. Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Sendo assim, várias pretensões reparatórias prescreveram no mesmo dia: 11 de janeiro de 2006, com exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade nesse período ou cuja maioridade ainda não tenha sido reconhecida. Nesse sentido, transcreve-se: “se a ação de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002. O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta no art. 2.028 do CCB/2002” (TJRS, Apelação cível n. 283426-62.2013.8.21.7000, Farroupilha, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 28/08/2013, DJERS 05/09/2013).
Como se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas, mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo, mas também na verificação da existência ou não da suposta pretensão. Em suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo prescricional têm feito que os pedidos de reparação imaterial sejam afastados na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário.

[1] Coluna do Informativo Migalhas de Agosto de 2017.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor da Rede LFG e do Curso CPJUR. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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